Entrevistas com Grandes Mestres

Entrevista com Sensei Seishiro Endo
(Entrevista concedida à Stanley Pranin)

Sensei Seishiro Endo
Aikido Journal - Como o senhor começou no Aikido?
Sensei Endo: Eu não sabia nada sobre a arte até Abril de 1963, pouco depois de eu ir para a Universidade Gakushuin. Eu estava passeando pelo campus quando um de meus sempai (aluno sênior) me perguntou se eu queria ir dar uma olhada no clube de Aikido da universidade. Fomos até o dojo e acabei começando no mesmo dia. Eles me fizeram andar em shikko (de joelhos) por mais de duzentos passo. Eu havia feito um pouco de judo na escola, por isso eu não estava muito fora de forma, mas certamente eu não estava preparado para andar 200 passos em shikko. Eu me lembro claramente que minhas pernas se recusavam a mover quando eu estava tentando sair da estação de trens naquele dia.


A universidade reconhecia o clube de Aikido como um clube oficial atlético?
Não, ainda era visto como um grupo informal. A Universidade Gakushuin é uma escola já bem antiga com um grande sentimento em respeito a tradição, por isso era difícil para clubes novos serem reconhecidos oficialmente. Primeiro eles teriam que provar a seriedade e sua longevidade. O clube não era reconhecido nem semi-formalmente até três anos após eu Ter me tornado o quarto capitão do clube, e levou mais dez anos depois disso, para se tornar um clube atlético oficial. No geral, levou uns vinte anos para passar de grupo informal até o status de clube oficial.

Quem eram os instrutores naquela época?
O primeiro shihan a nos dar aulas foi Hiroshi Tada, mas ele foi para a Itália em Setembro do meu primeiro ano na universidade. Mitsunari Kanai, que nos ensinou por um ano, o substituiu e, depois tivemos o Sensei Yasuo Kobayashi por seis meses aproximadamente. Logo depois de me formar me juntei ao Aikikai, e eu próprio fui enviado até lá para dar aulas.

Entendi que após quatro anos de treinamento como estudante universitário, o senhor decidiu não entra no mercado de trabalho e se tornar um professor de Aikido.
Estudantes de universidades Japonesas geralmente começam a procurar emprego no mês de Junho de seu último ano. No início de Julho, a maioria dos alunos já decidiu onde vai trabalhar. Quando essa época chegou para mim, eu estava meio dividido sobre o que eu queria realmente fazer. Me lembro que no primeiro dia em que cheguei em Tóquio de minha cidade natal Nagano. Eu estava na linha Yamanote perto da cidade de Ueno, e conseguia ver vários arranha céus de escritórios quando passava por estações como Tóquio, Yurakucho e Shimbashi. Em me lembro de pensar, "Bem, pelo jeito acho que vou estar trabalhando em um desse prédios um dia". Mas quanto mais eu praticava Aikido, mais ele me fascinava, por isso, quando chegou minha vez de procurar trabalho, não foi fácil para decidir o que realmente eu queria fazer na minha vida. Eu até recebi uma oferta informal de trabalho, mas depois de pensar um pouco sobre ela eu me decidi que queria seguir no Aikido na verdade.

O senhor deve ter tido muita coragem, sendo um universitário formado, largando uma carreira promissora, especialmente no Japão.
Você deve se lembrar que por volta de 1960, a economia do Japão começava a melhorar. Eu me formei no meio dessa época em 1967, por isso haviam muitas oportunidade existentes em grandes firmas, até para alguém como eu. Devo confessar que não estudei muito na universidade, ao invés disso me tornei um leitor ávido. Mesmo quando eu conseguia ir às aulas, eu dormia após uns dez minutos (Risos), De fato, eu provavelmente dormi durante a maioria de minhas aulas. O restante de meu tempo eu passava na biblioteca. Na hora do almoço eu voltava para a cafeteria para comer e em seguida voltava para a biblioteca. Às 2:00hs eu corria para chegar na aula das 3:00hs no Hombu Dojo e depois voltava para o campus para praticar no clube de Aikido.

Parece que o senhor ficava bastante tempo na escola, mas está sendo difícil de decidir se o senhor foi um aluno aplicado ou não (Risos).
Eu passava muito tempo lá provavelmente porque não tinha outro lugar para ir (risos)! Durante meu primeiro ano eu decidi que, se eu conseguisse ir bem em oito das quatorze aulas, daí eu começaria a me aplicar nos estudos. Eu só fui bem em uma, então quase que desisti desde o início. Eu sabia que precisava de pelo menos umas boas notas para conseguir um trabalho decente depois de me formar, mas senti que se eu treinasse Aikido o mais duro que pudesse, possivelmente eu poderia usar isso com meus futuro empregadores. Foi uma maneira bem ingênua de se pensar nisso.

O senhor parecia ter sua vontade própria e ambições.
Acho que poderia se dizer que eu tinha minhas visões fixas em meu sonho. As pessoas sempre me disseram que eu era sonhador. Eles me perguntavam porque eu havia escolhido fazer uma coisa que parecia inútil e sem qualquer relação como Aikido, quando eu tinha um futuro promissor e estava a caminho de encontrar um trabalho "respeitável". Mas eu pensava que me aplicar completamente ao Aikido era algo que valeria a pena. Eu não via razão porque eu não conseguiria me manter, mas vi que, mesmo que as coisas não funcionassem perfeitamente, eu ainda assim queria mês esforçar para aperfeiçoar a mim mesmo, ainda que fosse um pouco, por isso eu me atirei de coração e alma em meu treinamento. Para me encorajar eu costumava cantar canções sobre juventude e individualidade e reflexão interior. você sabe, "Minhas roupas podem ser pobres mas meu coração é de ouro", desse tipo de atitude (risos).

Eu imagino que depois de trinta anos que você virou a própria mesa, muitos de seus colegas da universidade deve invejá-lo em sua posição hoje em dia.
Pode até ser. Se eu tivesse seguido e trabalhado em uma dessas grandes companias que eu assistia da janela de meu trem, tenho certeza de que agora eu estaria encostado em algum canto obscuro de um escritório ou colocado em alguma das firmas subsidiárias. Alguns de meus colegas de classe dizem que, enquanto que as grades corporações lhes deram algumas boas recordações, especialmente durante o período da explosão econômica no Japão, acham que deveriam ter seguido em outra trabalho, um que realmente gostassem.

O senhor provavelmente tem dez vezes mais liberdade do que eles!
Sem dúvida!!

Qual era sua impressão sobre O-Sensei quando o encontrou pela primeira vez?
Eu não posso dizer que tive impressão de uma grande força ou algo parecido. É claro que seus olhos eram realmente cortantes quando ele estava executando técnicas, mas no geral, ele me parecia mais como um bom velhinho, do tipo vovozão. Durante o treinamento ele nunca me atirou de um lado para o outro ou algo parecido.

O senhor ainda era aluno universitário quando o encontrou pela primeira vez?
Eu o vi pela primeira vez em meu segundo ano de universidade, quando iniciei meu treinamento diário no Hombu Dojo. Eu nunca falei com ele até Julho de meu último ano na universidade, quando me decidi a fazer parte do Aikikai. Meu pai me acompanhou até o dojo para fazer uma saudação formal por mim ao Sensei Kisshomaru e então falei com O-Sensei pela primeira vez. Uma vez ele me disse para empurrar seus joelhos de lado. Eu fiquei espantado em ver como eles eram moles. Mas eles eram moles de maneira que até pareciam estar se opondo a serem empurrados, como se, se eu tentasse empurrá-los mais forte eu cairia num vácuo. Essa moleza me deixou particularmente impressionado. Houve outra vez em que todos estavam fora do dojo e eu me achei fazendo ukemi para o O-Sensei, que estava demonstrando para um grupo de repórteres. Ele estava demonstrando alguma técnica similar a suwari-waza kokyu ho, mas assim que eu me movia para tentar imobilizar seus braços, de repente parecia que eu havia batido numa grande rocha e eu caía voando.

Como foi treinar para se tornar um profissional no Aikido?
Bem, na verdade não foi tão difícil (Risos). Nós treinávamos dás 6:30 às 9:00 da manhã, e depois do treinos eu ia até a praia em Enoshima com outros alunos. Naquele tempo não haviam muitos lugares para se ir dar aulas, por isso tínhamos bastante liberdade para fazer esse tipo de coisa.

Você deve ter boas recordações daqueles dias!
Sim, era ótimo! Hoje em dia os campos de treinamento universitários duram somente alguns dias, mas naquela época durava pelo menos uma semana. Senão não teríamos outra coisa para fazer. É claro que tive minha parcela de treinos austeros. Um aspecto importante disso era limpar o dojo de lado a lado todas as manhãs antes das aulas. Ninguém me mandava, eu sentia que deveria fazê-lo. Eu limpava os banheiros, e deixava as bacias muito limpas, imaculadas, branquíssimas, tão limpas que poderia se comer nelas. O dojo está envelhecendo agora, por isso é inevitável que fique um pouco sujo, mas os banheiros são coisas que podem ser mantidos sempre limpos se você tiver tempo de ter consciência de limpá-los. Hoje em dia eu penso se esse tipo de coisa que eu fazia não valia até mais do que os treinamentos no tatami. De qualquer forma, para mim foi uma excelente experiência. Nós temos uma expressão "acumular virtudes ocultas" (intoku wo tsumu), que se refere a melhorar a si mesmo ao executar tarefas que pessoas normalmente evitariam. Eu acho que tais "austeridades" forma um aspecto muito importante de meu treinamento.

Você mencionou que é um leitor ávido. Existe alguma obra em particular que o senhor considera favorita ou que acha que foi extremamente benéfica?
Existem tantos livros de que gostei, que seria difícil apontar algum em especial. Quando eu tinha meus 20 anos, eu li muitos livros sobre Zen Budismo, particularmente da seita Rinzai. Mais tarde comecei a ler sobre a seita Soto também. Mesmo que minha leitura seja vasta, não posso dizer que sou expert em nenhum assunto. Ampla mas não profunda, como diz o ditado. Sou um viciado em livros. Eu não me sinto bem se não tenho alguma coisa para ler ao meu lado. Sempre carrego um livro, mesmo que seja pesado e que eu não tenha tempo para lê-lo. No momento estou lendo algo de Tempu Nakamura.

Quando o senhor se interessou em Tempu Nakamura?
Eu frequentemente ouvia falar dele por meu sempai que havia visitado o Tempukai. Além disso eu não sabia muito sobre ele naqueles tempos.

Particularmente, qual shihan lhe impressionou mais?
Provavelmente Koichi Tohei foi o que mais me impressionou. Além de ser o mais velho, ele tinha uma personalidade muito forte e única. Sensei Osawa foi outro. Ele me pois debaixo de suas asas e falava muito sobre Aikido e sua vida em geral. Eu me tornei o tipo de pessoa que sou hoje graças ao Sensei Osawa. Os professores do Hombu Dojo eram todos relativamente jovens, e tanto os alunos quanto os professores treinavam muito energicamente, por isso seria difícil de se apontar um dos indivíduos que tenha influenciado meu treinamento mais do que o resto.

Como era o ensinamento do Sensei Tohei?
No geral ele fazia as coisas mais fáceis de serem assimiladas. Pensando nisso nos dias de hoje, no entanto, eu percebo que muitos de seus métodos de ensino foram influenciados por Tempu Nakamura. Ele costumava dizer, por exemplo, "Penso no centro de gravidade de seu braço como estando na parte de baixo", e coisas desse tipo. Eu tentei seguir tais instruções no melhor que pude, mas é claro que não eram tão simples assim. Sensei Tohei me corrigia vez após vez até que finalmente dizia, "Ah, você melhorou". O problema era que eu não conseguia ver o que tinha mudado em mim para receber esse comentário. Porque ele estava me dizendo que eu estava melhorando quando eu mesmo não conseguia ver as mudanças? Isso continuou acontecendo, e eventualmente eu comecei a me sentir um pouco frustrado. Sensei Tohei tinha tanto para oferecer, que às vezes até penso se teria sido melhor se tivesse adotado outro método de ensino.

Pelo que entendi, seu Aikido sofreu mudanças quando o senhor chegou em seus trinta anos.
Quando eu tinha trinta anos de idade desloquei meu ombro. Esse fato foi crucial em minha vida. Seigo Yamaguchi me disse, "você já está praticando Aikido há dez anos, mas agora só tem seu braço esquerdo para usar, o que você vai fazer? Até aquela época eu havia treinado muito pouco com o Sensei Yamaguchi, mas depois do que ele me disse, comecei a frequentar suas aulas o máximo possível. Comecei a perceber o quanto eu dependia da força de meus ombros e do meu corpo durante o treino. Eu perguntava a mim mesmo se eu conseguiria continuar praticando Aikido assim pelo resto de minha vida. A pergunta do Sensei Yamaguchi foi a coisa que me deixou perplexo e me lançou no próximo patamar de treinamento que eu deveria seguir. Aproveitei a oportunidade para mudar minha abordagem do Aikido em 180 graus. Tenho certeza de que todos se lembram de ouvir pelo menos em uma ocasião para "tirar a tensão dos ombros". Sensei Yamaguchi falava sobre isso --- sobre praticar Aikido sem uso de força. É mais fácil falar do que fazer, é claro. Quando você tenta tirar a força de seus ombros, frequentemente acontece de perder seu ki! Isso é esperado. você pode comparar isso como aprender a esquiar. Quando você segue um bom professor, parece que você desenvolve mais rápido e esquia mais levemente pelas trilhas. Mas as coisas começam a desmoronar quando você tenta esquiar sozinho sem professor para ensiná-lo. Eu passei pela mesma coisa quando tentava me livrar do uso da força no Aikido. Eu conseguia quando Sensei Yamaguchi estava por perto, mas quando eu ia a outro lugar, de repente eu me tornava incapaz de fazê-lo. Foi muito frustrante e eu sempre voltava a usar força para entrar minhas técnicas. Lutei com esse problema por uns seis meses.

Acho que foi Shinran (1173-1263 - fundador da seita Jodoshin do Budismo da Terra Pura) que disse, "Mesmo que se o que meu professor Honen me diz parece errado; mesmo que pareça que estou sendo enganado, tenho confiança absoluta no que estou fazendo, por isso sigo o caminho de meu mestre, mesmo que ele me leve ao Inferno". Eu pensei, bem, porque não? Se eu for enganado pelo Sensei Yamaguchi, que seja!! Sensei Yamaguchi me disse a mesma coisa, "Mesmo que você não entenda, aceite minha palavra e faça-o. Espere uns dez anos e verá". E foi o que eu fiz. Ao invés de tentar tirar a força e depois voltar a usá-la quando as técnicas não funcionassem, resolvi explorar o modo sem-força exclusivamente, sem me importar com o resultado. Mas, mesmo com a nova atitude tomada, o meio em que eu treinava não mudou. Não demorou muito para eu perceber que meus parceiros não iam cair por isso, quando eu tentasse arremessá-los sem uso de força. Não tive outra alternativa a não ser dizer a eles, "Veja bem, eu não consigo fazer essas técnicas nesse momento, mas será que você poderia cair mesmo assim? Foi algo muito fora do comum para um 4º Dan estar pedindo isso. As pessoas se surpreenderam um pouco. Bem, foi assim que comecei minha tímida abordagem ao novo tipo de treinamento. Tomei precauções extremas para não me frustrar, pois eu sabia que se isso acontecesse eu voltaria ao ponto de início, usando força novamente. Quando eu estava fazendo ukemi para o Sensei Yamaguchi, ele me murmurava coisas como, "quanto mais força você deixar de usar, mais o seu ki se concentrará" e "focalize sua força em seu baixo abdôme". Tentei manter minha percepção aguçada no que eu estava fazendo quando eu fazia ukemi, sem me importar no que era feito comigo, e depois de alguns anos eu começei a entender o que ele me falava e o que ele estava fazendo. Eu sabia que eu havia finalmente encontrado uma abordagem ao treinamento que era ideal para mim.

Daí em diante eu trabalhei intensamente para aumentar esse sentimento fazendo uma só técnica exclusivamente por um tempo razoável. Por exemplo, eu só fazia shomen uti ikkyo por seis meses, não importando em que dojo eu estava. Treinando assim me deu uma compreensão mais profunda de cada técnica. Ajudou-me a aprender a como me situar em cada técnica em situações diferentes, e também a entender como os princípios de uma técnica poderiam ser aplicados em outras técnicas. Quando estou ensinando hoje em dia, eu sempre digo coisas como, "olhe de perto para si mesmo e sinta o que você está fazendo" ou "Sinta seu parceiro e conheça seu estado de espírito e o equilíbrio físico de seu corpo, e também a relação entre os dois. Existe uma expressão, "mente, técnica e corpo são uma só coisa" (shingitai itchi). Quando sua mente está desligada, seu corpo não é capaz de se mover eficientemente. Assim como, um corpo fora de equilíbrio pode agitar a mente ao ponto de que você não será capaz de entender corretamente o relacionamento entre você e seu parceiro, e isso não deixará você fazer a técnica que você precisa fazer. Uma vez que você fez o encontro inicial (deai), mudou a posição de seu corpo (taisabaki), e desequilibrou seu parceiro (kuzushi), é essencial sentir qual será a técnica que se surgirá naturalmente, dadas as condições emergentes entre vocês os dois. O-Sensei falava de "se tornar um só com o Cosmos" ou "se tornar um só com a Natureza". Uma maneira de se interpretar isso é, ao invés de se forçar a entrada de uma técnica de acordo com o desejo unilateral, você deve perceber qual técnica irá surgir naturalmente. Isto é, as técnicas que surgem naturalmente, do relacionamento entre você e seu parceiro. Nós normalmente aprendemos Aikido indo de técnica em técnica, uma a uma, praticando repetitivamente o que nosso professor nos mostra. Isso quer dizer que temos que fazer aquela técnica não importa o que aconteça, mesmo que envolva esforços desnecessários e movimentos que não surgem sempre naturalmente. É importante que você monitore a si mesmo e perceba tal esforço involuntário. você precisa ser perceptivo e objetivo para dizer a si mesmo, por exemplo, "Minha última técnica foi boa, mas o contato (deai) entre meu parceiro e eu não está mais funcionando". É importante que se verifique constantemente a si mesmo para que se mantenha uma percepção de seus movimentos para saber se o que você está fazendo é algo verdadeiramente natural ou não.

Foi só depois que parei de utilizar qualquer tipo de força nos treinamentos que fui capaz de instantaneamente mudar de uma técnica que estivesse executando para qualquer outra que quisesse. Faz sentido, é claro, que quanto menor o esforço envolvido, mais fácil se torna a mudança para qualquer outra coisa. Quando eu trabalhava nesse conceito, também me lembrei do que O-Sensei sempre costumava dizer, "Quando for assim , faça isso, quando for assim de outro modo, faça essa outra coisa", todo o tempo e nunca fazia a mesma coisa duas vezes. Pensei, "Agora acho que entendo o que ele quis dizer com aquilo!". Com esse tipo de abordagem você nunca estará usando força excessiva, porque uma coisa simplesmente se transformará em outra coisa adaptando-se às necessidades.

Imagine um rio cheio de pedras. Quando a água as pedras menores ela flui por cima delas. Quando ela encontra maiores, flui ao redor delas. Mesmo que você represe um rio, ela nunca pára de fluir; a energia potencial está sempre lá, crescendo e vibrando na represa, tentando sair ou passar por cima da barragem. O Aikido é a mesma coisa. Não é mais um caminho "vivo" se você se limita a procurar o contato com uma só técnica específica. É muito importante ser capaz de mudar e se mover para algo diferente no momento em que as condições mudam e o que você está fazendo não surte o efeito desejado. Não é somente uma questão de fluir em algo diferente quando você é bloqueado; também é necessário se investigar como se "guarda a energia". Nós todos temos possibilidades das quais não temos consciência, por isso temos que pensar em como podemos usar, amplificar e aplicar essa energia latente.

No "Tora no Maki", uma obra na qual se diz conter os segredos da quintessência das artes marciais e da estratégia, diz "O que vem é encontrado, o que vai segue é enviado ao seu próprio caminho; o que está em oposição é harmonizado. Cinco mais cinco é dez; dois mais oito é dez; um e nove é dez. Dessa maneira as coisas devem ser harmonizadas. Distinguir aparência e realidade, percebendo tanto as verdadeira intenções, as estratégias ocultadas e decepções; conhecer potenciais desconhecidos e implicações escondidas. Entender do que se trata o grande esquema e estar atento aos detalhes e particulares que se fizerem necessários. Quando uma situação de vida ou morte é iminente, responder à miríade de mudanças acontecendo e enfrentar as situações com a mente livre de agitações."

Essa passagem foi alimento para meu pensamento. Essas palavras são provavelmente aplicáveis não somente ao treinamento do Aikido, mas também à vários aspectos da vida. Certamente, aprendemos tais coisas através de nosso treino de Aikido mas, falando realisticamente, a maioria de nós passa mais tempo fora do dojo do que dentro dele, por isso seria estranho não compreender que, o que aprendemos no dojo se estende aos vários aspectos da vida também. Não seria correto falar de vencer ou perder quando falamos sobre Aikido, mas o melhor tipo de vitória , eu acho, é quando você consegue a harmonia com seu oponente, e ambos conseguem sentir essa harmonia.

Em meu ponto de vista, a melhor técnica é aquela em que nenhuma das parte sentem ter vencido ou perdido, mas de terem se "conectado com sucesso". Tal coisa não acontece, e se acontece é somente uma vez num milhão. Nossa meta em treinamento, é de fazer isso ocorrer uma vez em cada meio milhão, uma vez em cada cem mil, e assim por diante. Se uma pessoa tem ou não fé de que um dia ela acontecerá, e se ela irá ou não perceber quando isso acontecer, depende do grau de seriedade e empenho em seu treinamento. Dou muita importância a esse tipo de coisa. A pessoa que mantém uma percepção sempre aberta de seu ser, irá sentir quando essa vez acontecer. Com esse tipo de percepção, você poderá observar com afinco a si mesmo e sentir sua relação com seu parceiro. Quando uma técnica sai perfeita, ela é perfeita somente naquele momento; quando o encontro com seu parceiro não for perfeito, ela não sairá perfeita. Quando isso acontecer, você não deve tentar evitar, mas deve aceitar a imperfeição e tentar aproveitar o máximo dessa relação.

O ki no nagare (técnicas fluidas) é importante em seu treinamento?
Se você quer dizer entrar as técnicas antes de ser agarrado ou arremessar meus oponentes antes de ser tocado por eles, então não, isso não é parte do meu Aikido. Quando falo sobre deixar de usar força e poder eu não quero dizer somente deslizar suavemente nas técnicas quando meu parceiro está para me agarrar. O que quero dizer é que não é só físico; tem tanto a ver com a mente e com o espírito (kokoro) como com o corpo. Movimentos suaves não serão eficientes para responder a um ataque firme e forte se sua mente não está ajustada ou se você não consegue usá-la eficientemente. Quando seu parceiro o agarra fortemente, a primeira coisa a se fazer é ajustar sua mente em colocar seu inteiro ser em sua pegada. Quanto mais forte a pegada mais você deve ir para dentro dela. Não é bom tentar executar a técnica somente com seus dedos, pulso ou braço. você deve acertar o centro de seu parceiro do seu próprio centro, um tipo de interação que faz você sentir naturalmente a orientação de força e energia de seu parceiro. Um aluno europeu de Aikido me disse uma vez, "Todos os shihan estão sempre dizendo para deixar o uso da força de lado, mas parece que todos eles colocam muita força em todas as suas técnicas. você é o único que executa as técnicas sem o uso de qualquer tipo tangível de força". Fiquei lisongeado ao ouvir isso, porque me reafirmou que minha abordagem não foi falsa.

O que o senhor pensa sobre os treinos com espada?
Bem, ultimamente eu tenho pensado que seria necessário pelo menos praticar o suburi, mesmo se você não vai se aprofundar muito para até praticar com espada com parceiros. Falando por mim mesmo, existe tanta coisa que ainda não compreendo sobre o taijutsu (técnicas com as mãos vazias), que não estou muito propenso a fazer muitas coisas com a espada ainda. Eu prefiriria esperar até ficar mais velho e daí fazer alguma coisa mais como uma "dança alegre" com o jo e o ken --- o tipo de coisa que O-Sensei fazia em seus últimos anos. Esse seria o estado em que eu gostaria de começar a pensar sobre o que fazer quando meu parceiro me atacar ou o que significa enfrentar usando armas.

Quando o senhor começou a viajar para o exterior?
Minha primeira viagem foi quando eu acompanhei o Doshu a uma visita ao Sudeste da Ásia, quando eu tinha 29 ou 30 anos de idade. Comecei a ir à França regularmente há uns 15 ou 16 anos, e à Finlândia e Suécia, há uns 11 anos. Há um tempo atrás um aluno europeu gostou de minha maneira da dar aulas, aparentemente achando-as diferentes. Ele queria me convidar para dar aulas, mas achou que seria meio constrangedor pois ele já estava treinando em seu país com um professor diferente. Depois de pensar no assunto por um ano mais ou menos, ele chegou a conclusão de que aquilo não faria mal algum. Hoje em dia, mais e mais pessoas vem participar quando dou seminários lá. Eles até arrecadaram dinheiro entre eles para construir um dojo próprio e recebo convites diretamente deles. Viajar ao estrangeiro é sempre fácil, é claro. A barreira da comunicação é sempre um desafio, e tentar me comunicar em Inglês sempre é um teste para mim. Uma vez, durante uma estadia, fui tão bombardeado com perguntas que quando fui para cama eu não sabia se estava acordado ou dormindo, porque ao Inglês continuava girando em minha cabeça [risos]! Eu sei que preciso aprender mais Inglês, por isso comecei a estudar um pouco. Eu gosto de viajar, e se eu conseguir melhorar meu Inglês eu gostaria de viajar ainda mais.

As pessoas no estrangeiro tentam testar sua abordagem leve?
Sim, esse tipo de coisa acontece também no Japão. Eu sempre deixo as pessoas que querem me testar agarrarem bem firme primeiro, antes de eu fazer qualquer coisa. Meus braços não são tão grandes, e eu não sou uma pessoa especialmente forte e minhas técnicas não usam nenhuma força aparente, por isso muitas pessoas pensam que eu não serei capaz de reagir se eles me segurarem bem forte. Eles sempre se surpreendem quando sentem a diferença. Temos oportunidades para estudar muitas técnicas diferentes, mas provavelmente não seja necessário aprender tantas. Eu posso ir até somente as técnicas de testes do nível de 5º kyu --- shomenuchi ikkyo, shomenuchi iriminage, katatedori shihonage, e suwariwaza kokyuho --- que podem ensinar tudo o que você precisa saber sobre deai, maai, sabaki, kuzushi e o modo de usar seu corpo e mente. Muitas pessoas não se satisfazem até que aprendam um grande número de técnicas, mas o fato que permanece é que o que é ensinado a você, pode facilmente ser somente algo que foi ensinado a você e nada mais. Não é algo seu até que você seja capaz de exteriorizar através de seus próprios esforços.

Como você compararia treinar no Japão com treinar em outro país?
Odeio dizer, mas acho que os Aikidokas Japoneses são muito duros. A falta de treino pode ser parte do problema, mas os Japoneses não relaxam facilmente no dojo. As pessoas de outros países tendem a ser mais leves e mais "abertas". Eu acho que é muito importante se manter uma qualidade leve e relaxada todo o tempo durante o treino. Não acho que isso distraia de qualquer maneira do "rigor marcial" da arte, desde que você pratique seriamente.

Existe uma estória famosa do terneiro shogun Tokugawa, Iemitsu [1604-1651]. Parece que ele teve que receber um tigre de presente da Coréia. Ele tentou colocar vários animais na jaula do tigre para ver como eles lutariam. Claramente, nenhum dele se deu bem. Por não achar aquilo muito interessante, Iemitsu decidiu aumentar a emoção mandando para dentro Yagyu Tajima no Kami, um grande espadachim que também era seu instrutor. Yagyu foi para dentro armado somente com um bokuto (espada de madeira), mas ele conseguiu se safar e saiu da jaula exausto e pingando suor. Em seguida, Iemitsu decidiu mandar para dentro o monge Zen Takuan. Os dois tiveram uma discussão e Iemitsu quis puní-lo. Quando Takuan entrou na jaula, o tigre simplesmente chegou perto dele e rolou aos seus pés! A estória é um bom exemplo para se manter sempre num estado natural de calma diariamente. Não importa se seu inimigo é um tigre ou uma pessoa, se você se aproxima com a intenção de machucar, naturalmente eles irão te atacar de volta. Ao não se cultivar tal intenção, deixando-se envolver pela calma normal de todos os dias, você atingirá um estado de temperança.

Se o treinamento de Aikido não fosse nada mais do que uma forma, você teria que fazer a técnica corretamente e seu parceiro cairia nela. Mas os katas do Aikido são raramente tão infalíveis. Se, ao tentar se executar certa técnica você sentir ter que usar um esforço excessivo, isso será uma oportunidade para você parar e pensar no que está errado com ela. Seria um problema com o modo em que você está fazendo o contato inicial com seu parceiro? você está conseguindo tirar o equilíbrio de seu parceiro? você está conseguindo o timing e mantendo a distância (maai) correta? você está usando sua respiração (kokyu) corretamente? Há algum problema na aplicação geral da técnica?

Um dos propósitos importantes do treinamento é achar o que você está fazendo de errado e encontrar meios de corrigir e fazer o que você antes não conseguia. O primeiro passa, é claro, é ser capaz de perceber, ou sentir eu diria, quando você chega a essa limitação. Não ser capaz de reconhecer quando algo está envolvendo um esforço excessivo - quer dizer, estar tão envolvido em alguma coisa que não consegue fazer mais nada --- é uma mentalidade estática, não muito diferente de se "esperar para morrer". Não há evolução ou progresso acontecendo. Eu falo sobre a importância de vários conceitos separados, como a mutabilidade (henka), fluência (nagare), e evitar esforço excessivo, mas todos esses levam a algo mais profundo, que é expressado num dizer da escola Jigen-ryu de espadachins: "Não há Segunda espada na Jigen-ryu". Se minha interpretação disso está correta, eu acho que isso reflete o que eu considero ser a essência e maior objetivo de meu treinamento, que pode ser somado a essas palavras, "Existe somente o mover-se para frente".

Quais são seus planos para o futuro?
Bem, parece que poucos dojos no Japão nos dias de hoje, tem o tipo de atmosfera que realmente mereça o nome "dojo". Muitos são espaços alugados em grandes ginásios públicos e centros culturais. Infelizmente, tais lugares são raramente uma coisa que conduza ao verdadeiro desenvolvimento de coração para coração dos treinos e relações entre professores e alunos. Foi minha grande sorte treinar com tantas pessoas diferentes tanto no Japão como fora dele, e poder falar com eles sobre O-Sensei e Aikido sempre me deixa cara a cara com minha imaturidade relativa na arte. É por isso que, por um longo tempo eu venho desejando um tipo de dojo que permita um tipo de treinamento mais natural, consciente e perseverante. Nesse mês de abril, com o apoio do Doshu e muitos outros, eu próprio finalmente consegui abrir um dojo assim. Sou profundamente grato ao Doshu por me permitir seguir meu Aikido tão egoisticamente durante esses trinta anos, e estou ansioso para fazer do novo dojo onde as pessoas que realmente querem seguir no Aikido de maneira sincera, possam livremente se juntar para praticá-lo.

Sensei Endo, muito obrigado por dividir conosco seus pensamentos e experiências.

(Traduzido por Paulo C. G. Proença - Dojo Kokoro - Sorocaba)
http://www.aikikai.org.br/ent_seishiro.html